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4 de nov. de 2014

A dama ou o tigre ?

 
 
Em tempos remotos, vivia um rei semi-bárbaro, cujas idéias, embora tornadas um tanto brilhantes e sutis pelo progresso dos seus distantes vizinhos latinos, eram ainda opulentas, floridas e arbitrárias, como convinha à metade bárbara da sua natureza. Era um homem de imaginação exuberante, e, além disso, de uma autoridade tão irresistível, que, a um simples desejo seu, transmudava em realidade as suas variadas fantasias.


Era grandemente dado à auto-determinação; e, quando entrava em acordo consigo mesmo sobre uma coisa qualquer, essa coisa se podia considerar realizada. Quando todos os membros dos seus sistemas domésticos e políticos se moviam suavemente no rumo indicado, a sua natureza era branda e alegre; mas, se acaso surgisse um pequeno impedimento, e um ou outro dos elementos desses sistemas desgarrassem das suas órbitas, ele ainda ficava mais brando e alegre, pois nada lhe agradava mais do que endireitar o que estava torto, e destruir qualquer irregularidade. Dentre as noções importadas, pelas quais o seu barbarismo se havia reduzido à metade, contava-se a arena pública, onde, pelas exibições da valentia humana e animal, os espíritos dos seus vassalos eram aperfeiçoados e cultivados. Mas, ainda aqui a fantasia exuberante e bárbara afirmava-se. A arena do rei fora construída, não para dar ao povo uma oportunidade de ouvir as rapsódias de gladiadores moribundos, nem para habilitá-los a ver o inevitável desfecho de um conflito entre opiniões religiosas e fauces famintas, mas com propósitos muito mais aptos a alargar e desenvolver as energias mentais do povo. Esse vasto anfiteatro, com suas galerias circulares, as suas misteriosas abóbadas e as suas passagens secretas, constituía um agente de poética justiça, onde o crime era punido ou a virtude recompensada, pelos decretos de uma imparcial e incorruptível sorte.

Quando um vassalo era acusado de um crime de uma importância tal, capaz de interessar o rei, baixava-se um aviso público, designando o dia em que o destino da pessoa acusada seria decidido na arena do rei, construção que bem merecia este nome; pois, embora a sua forma e a sua planta tivessem sido importadas do estrangeiro, o fim a que era destinada provinha unicamente do cérebro desse homem, que, rei até a raiz dos cabelos, não conhecia tradição a que devesse maior lealdade do que agradar a sua fantasia, e que imprimia em cada forma alienígena do pensamento e da ação humana o rico vigor de seu bárbaro idealismo.

Quando todo o povo se encontrava reunido nas galerias, e o rei, rodeado pela sua corte, depois de se sentar no seu alto trono real sobre um lado da arena, dava um sinal, uma porta abaixo dele se abria, e o súdito acusado saía para o anfiteatro. Diretamente em oposição a ele, no outro lado do espaço fechado, havia duas portas, exatamente iguais e colocadas lado a lado. Era o dever e o privilégio do indivíduo em julgamento, caminhar diretamente para essas portas e abrir uma delas. Ele poderia abrir a porta, que lhe agradasse: não estava sujeito a nenhuma orientação ou influência, afora a já mencionada sorte, imparcial e incorruptível. Se abrisse uma, sairia dela um tigre faminto, o mais feroz e cruel que tivesse sido encontrado, o qual imediatamente saltaria sobre ele, e o faria em pedaços, como punição pela sua falta. No momento em que, o caso do criminoso assim se decidia, dolentes sinos de ferro ressoavam, grandes lamentos eram lançados por indivíduos alugados para esse fim e colocados nas bordas exteriores da arena, e aquela enorme multidão, de cabeças inclinadas e coração abatido, trilhava de novo, vagarosamente, o caminho de suas casas, lamentando grandemente que uma pessoa tão jovem e bela, ou tão velha e respeitada, tivesse merecido tão horrível destino.


Mas, se a pessoa acusada abria a outra porta, sairia dela uma dama, a mais adequada à sua idade e condição que sua majestade pode encontrar entre as suas belas vassalas; e com essa dama ele iria imediatamente se casar, como recompensa por sua inocência. Não importava que ele já possuísse mulher e filhos, ou que seu coração se houvesse comprometido com alguém de sua própria escolha: o rei não consentia que tais obrigações viessem a interferir no seu grande plano de retribuição e recompensa. Como no outro caso, esses atos tinham lugar imediatamente na própria arena. Uma outra porta abria-se abaixo do rei, e um sacerdote, seguido por um bando de coristas e de bailarinas, tocando temas em trompas douradas, formando um cortejo nupcial, avançava até o lugar onde se achava o par; e o casamento era pronta e alegremente celebrado. Então os festivos sinos de bronze repicavam alegremente, o povo lançava brados de contentamento, e o homem inocente, precedido por crianças que espalhavam flores no seu caminho, conduzia a noiva para a sua casa.
 

Era esse o método semi-bárbaro a que o monarca recorria para administrar justiça. A perfeita retidão do método é evidente. O criminoso não poderia saber de que porta sairia a dama: ele abriria a que lhe agradasse, sem a menor idéia do que lhe estava reservado para aquele instante mesmo: se iria ser devorado ou casado. Ora o tigre saía de uma porta, ora de outra. As decisões desse tribunal eram não somente honestas, mas concretamente executadas: o acusado via-se instantaneamente punido quando culpado; quando inocente, ele era recompensado no ato, quer quisesse, quer não. Não havia como escapar aos julgamentos da arena do rei.

A instituição era verdadeiramente popular. Quando o povo se reunia num dos grandes dias de julgamento, nunca sabia se iria testemunhar uma morte sangrenta ou um festivo casamento. Esse elemento de incertezas emprestava à ocasião um interesse que de outro modo não poderia ser atingido. Assim, divertia-se a massa, e a parte pensante da comunidade não poderia acusar esse plano de iníquo; pois não tinha o acusado o julgamento nas suas próprias mãos?


Esse rei semi-bárbaro possuía uma filha tão bela como as suas mais esplêndidas fantasias, e com uma alma tão ardente e imperiosa como a sua própria. Como acontece em tais casos, ela era a menina dos seus olhos, e ele a amava acima de toda a humanidade. Entre os seus cortesãos, achava-se um jovem com aquela pureza de sangue mas não era nobre, condições comuns ao heróis de romance que amam as donzelas reais. Essa donzela real estava bem satisfeita com o seu amado, porque ele era belo e bravo, num grau não ultrapassado em todo o seu reino; e ela o amava com um ardor que possuía o barbarismo suficiente para fazê-lo excessivamente ardente e forte.

 
Esse amor transcorreu feliz durante muitos meses, até o dia em que o acaso levou o rei a descobrir a sua existência. Ele não hesitou quanto ao que lhe cumpria fazer. O jovem foi imediatamente lançado na prisão, e designou-se o dia para o seu julgamento na arena do rei. Essa, naturalmente, era uma ocasião especialmente importante; e sua majestade, assim como todo o povo, estava grandemente interessado no desenvolvimento dessa prova. Jamais ocorrera caso semelhante; jamais havia um súdito comum ousado amar a filha de um rei. Nos anos posteriores tais coisas tornaram-se um lugar bastante comum; mas, então, elas constituíam uma espantosa novidade.

As jaulas de tigres do rei foram vistoriadas em busca das feras mais selvagens e cruéis, a fim de se selecionar dentre elas o monstro mais feroz para ser levado à arena; e todas as categorias de virgens jovens e belas foram em toda a parte cuidadosamente inspecionadas por juízes competentes, de modo a que o jovem pudesse ter uma noiva conveniente, no caso da sorte não lhe reservar diferente destino. Naturalmente, todos sabiam que o ato que lhe imputavam havia sido cometido. Havia-se enamorado da princesa, e nem ele, nem ela ou quem quer que fosse pensara jamais em negar esse fato; mas o rei não permitiria que uma circunstância dessa natureza fosse interferir nos trabalhos do tribunal, trabalhos dos quais ele tirava tão grande deleite e satisfação. Não importava como o fato se processara, o jovem iria privar-se desse amor; e o rei sentiria um prazer estético em observar o curso dos acontecimentos, que determinavam se esse moço tinha cometido um erro ou não, ao permitir-se amar a princesa real.

O dia designado chegou. O povo,  acorrendo de todos os lugares, foi-se reunindo e comprimindo nas grandes galerias da arena; e multidões, impossibilitadas de entrar, amontoavam-se contra as paredes exteriores. O rei e a sua corte achavam-se nos seus lugares, em oposição às portas gêmeas - aquelas portas fatídicas, tão terríveis na sua similitude.


Tudo estava pronto. O sinal foi dado. Uma porta por baixo da bancada real abriu-se, e o namorado da princesa apareceu na arena. Alto, belo, elegante, o seu aparecimento foi saudado com um surdo cochichar de admiração e ansiedade. Metade da assistência não sabia que um tão magnífico jovem pudesse viver entre eles. Não era de admirar que a princesa o amasse! Que terrível situação a dele!

Quando o jovem avançou dentro da arena, voltou-se como era o costume, para reverenciar o rei: mas ele não pensava absolutamente naquela personagem real; seus olhos estavam fixos na princesa, que sentava à direita de seu pai. Não fosse pela metade de barbarismo que entrava na sua natureza, é provável que aquela dama não estivesse ali; mas sua alma intensa e ardente não lhe permitira subtrair-se a um espetáculo que tão terrivelmente lhe interessava. Do momento em que o decreto tinha sido divulgado, segundo o qual seu amado decidiria o próprio destino na arena do rei, ela não tinha pensado em mais nada, noite e dia, senão nesse grande acontecimento e nos vários assuntos com ele relacionados. Possuindo mais poder, influência e força de caráter do que qualquer outra pessoa interessada em semelhante caso, ela tinha feito aquilo que, nenhuma outra pessoa jamais conseguira: havia-se apossado do segredo das portas. Sabia em qual dos dois compartimentos, que ficavam por detrás daquelas portas, se achava a jaula do tigre, com sua frente escancarada, e em qual deles a dama esperava. Através daquelas espessas portas, pesadamente forradas com peles pelo lado de dentro, era impossível que algum ruído denunciador pudesse chegar aos ouvidos da pessoa que se aproximasse para levantar a aldrava de uma delas; mas o ouro e poder da vontade de uma mulher tinham entregado esse segredo à princesa.


E não somente ela sabia em que compartimento estava a dama pronta para aparecer, toda ruborizada e radiante, assim que a sua porta se abrisse, como também sabia quem era a dama. Era uma das mais belas e amáveis donzelas da corte, que havia sido escolhida como recompensa para o jovem acusado, caso ele fosse julgado inocente do crime de aspirar a alguém colocado tão acima dele; e a princesa a odiava. Muitas vezes ela tinha visto, ou imaginado ver, aquela bela criatura lançando olhares de admiração sobre a pessoa do seu amado, e às vezes pensava que esses olhares eram percebidos e até retribuídos. Uma ou outra vez, ela os tinha visto conversando juntos; conversas que haviam durado apenas um momento; muita coisa porém pode ser dita num breve espaço de tempo; talvez tenham sido conversas sem importância, mas como ela poderia sabê-lo? A jovem era adorável, mas tinha ousado levantar os olhos para o amado de uma princesa; e com toda a intensidade do sangue selvagem transmitido através de longas linhagens de ancestrais inteiramente bárbaros, ela odiava a mulher que corava e tremia atrás daquela porta silenciosa.

Quando seu amado se voltou para ela e a viu, sentada, com a face mais pálida do que qualquer outra no vasto oceano de fisionomias ansiosas que o rodeavam, ele sentiu, ao encontrarem-se os seus olhares, pelo poder de rápida percepção que é dado a todos aqueles cujas almas se acham fundidas numa só, que ela sabia atrás de que porta se agachava o tigre, e atrás de qual delas se encontrava a dama. Ele havia esperado que ela tivesse conseguido saber isso. Compreendia-lhe a natureza, e estava seguro de que ela nunca descansaria, até que tivesse conhecimento de algo, que permanecia ignorado de todos os outros espectadores, até do rei. A única esperança que tinha o jovem de agir naquela conjuntura de maneira certa e segura, era baseada no bom êxito da princesa em descobrir o mistério; e no momento em que a fitava, percebeu que ela tinha obtido o êxito, como ele confiava que ela assim o fizesse.

Foi quando seu rápido e ansioso olhar formulou a pergunta: "Qual?" Foi para ela tão claro, como se, do lugar onde se achava, ele houvesse feito a pergunta em alta voz. Não havia um instante a perder. A pergunta fora feita num relâmpago; deveria ser respondida num outro.

O seu braço direito repousava sobre o parapeito almofadado que se estendia à sua frente. Ela levantou a mão e fez um leve e rápido movimento para a direita. Ninguém, a não ser seu amado, viu esse gesto. Todos os olhos a não ser os deles, estavam fixados no homem que se encontrava no centro da arena.

Ele voltou-se, e com um passo firme e rápido atravessou o espaço vazio. Todos os corações pararam de bater, toda respiração foi suspensa, todos os olhos fecharam-se naquele homem. Sem a menor hesitação, ele dirigiu-se à porta da direita, e abriu-a.

A questão, agora, é esta: Quem foi que saiu daquela porta: o tigre ou a dama?

Quanto mais refletirmos sobre essa pergunta, tanto mais difícil se torna o responder. Ela envolve um estudo do coração humano, que nos conduz através dos mais intricados labirintos de paixões, fora dos quais é difícil achar um caminho. Pense nela, honrado leitor, não como se a resposta à questão dependesse de você mesmo, mas daquela princesa de sangue ardente e semi-bárbara, com a alma aquecida ao branco, sob os fogos combinados do desespero e do ciúme. Ela o tinha perdido, mas quem o possuiria?

Quantas vezes, nas suas horas de vigília e nos seus sonhos, tinha ela estremecido de desenfreado horror, e havia coberto a face com as mãos, quando pensava no seu amado abrindo a porta, do outro lado da qual o esperavam as garras cruéis do tigre!

Mas quantas inúmeras vezes ela o tinha visto na outra porta! Como, nos seus mortificantes devaneios, tinha rangido os dentes, e arrancado os cabelos, ao ver o tremor de arrebatadora satisfação que se apossava dele quando abria a porta da dama! Como a sua alma ardera na agonia ao vê-lo lançar-se ao encontro daquela mulher, que ostentava uma face ruborizada e um fascinante olhar de triunfo; ao vê-lo conduzindo-a para fora, todo o seu corpo abrasado na alegria da vida recuperada; ao ouvir os brados alegres da multidão, e o desenfreado e festivo repicar dos sinos; ao ver o sacerdote, com sua alegre comitiva, avançando até onde se achava o par, e fazê-los marido e mulher diante dos seus próprios olhos; e ao vê-los afastarem-se, juntos, pisando o seu caminho de flores, acompanhados pelos tremendos brados da alegre multidão, onde um único grito de desespero - o dela - ficara perdido e afogado!

Não seria melhor que ele morresse de uma vez, e que fosse esperar por ela nas bem-aventuradas regiões da sua semi-bárbara vida futura?

E ainda, aquele terrível tigre, aqueles gritos, aquele sangue!

A sua decisão tinha sido tomada depois de dias e noites de angustiosa deliberação. Sabia que ele lhe faria aquela pergunta, tinha decidido o que lhe responderia, e, sem a mais leve hesitação, havia movido a sua mão para a direita.

A sua decisão constitui um ponto que não deve ser levianamente considerado; e eu não me julgo a pessoa capaz de responder à questão. E, assim, deixo-a para todos vocês: Quem saiu da porta aberta, a dama ou o tigre?

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Revisão e edição: Luis V Vallejo