Quod libet: Ser Bom sem Deus?
R. Joseph HoffmannTrad: L. Valentin
Ser bom não é o mesmo que ser ético, ou virtuoso, ou fazer o bem, ou mesmo levar uma vida correta.
Outra, contada pelo escritor Diderot, no século 18, é sobre a viagem de missionários católicos para o Taiti - um diálogo entre um chefe chamado Orou e um padre, que tenta explicar a ele o conceito de pecado.
Orou diz que muitas coisas que os europeus acham serem pecaminosas são fontes de orgulho em sua ilha. Ele não entende a ideia de adultério, já que em sua cultura a generosidade e o compartilhamento são virtudes. O casamento com um único homem ou mulher não é natural e egoísta. E, certamente, não pode haver nada de errado em ficar nu e desfrutar o prazer sexual para seu próprio bem, caso contrário, não haveria razão para a existência de nossos corpos. O padre horrorizado faz então um longo sermão sobre as crenças cristãs, e termina dizendo:
"E agora depois que lhe expliquei as leis da nossa religião, você deve fazer de tudo para agradar a Deus e assim evitar o sofrimento do inferno."
Orou responde: "Você quer dizer que, quando eu desconhecia esses mandamentos, eu era inocente, mas agora que eu conheço, eu sou um pecador culpado, que pode ir para o inferno."
"Exatamente", diz o padre.
"Então por que você me contou isso?", perguntou Orou.
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Essas histórias indicam algumas coisas sobre a relação entre religião e moral, ou mais precisamente, a crença de que Deus é a fonte da moralidade. A primeira história sugere que a crença em Deus é "dissuasiva". Ou seja, a religião é vista como uma forma de prevenir certos tipos de ações que faríamos se acreditássemos que Deus não existe. Nesse caso, o tipo de Deus em que as pessoas religiosas normalmente pensam, é o Deus do Antigo Testamento, ou o Deus que dita as regras e espera que sejam obedecidas.
Nem todas as pessoas religiosas acreditam que essas regras foram dadas por Deus diretamente a Moisés ou a Maomé, mas a maioria concorda que, geralmente, é uma boa ideia não roubar, cometer adultério, odiar seu vizinho (ou invejar obsessivamente suas posses), ou matar outras pessoas. Pelo menos por mil anos teólogos preocupados tentaram colocar essas regras essencialmente negativas de uma forma mais positiva: por exemplo, dizendo que as pessoas devem agir por amor de um para o outro, ou por amor a Deus, e não por medo. A maioria dos cristãos diria que esta é a diferença essencial entre as leis do Antigo Testamento e os ensinamentos de Jesus no Novo. Mas eles estão certos apenas parcialmente. Ambos os livros da Bíblia e todo o Alcorão enfatizam o temor a Deus, o julgamento, as recompensas e punições do futuro como incentivos ao arrependimento, com o fiel levando uma vida melhor, abandonando a vida de pecados. Até mesmo os livros da Bíblia que estão contaminados com o pensamento grego - como o Livro dos Provérbios - enfatizam que "o temor do Senhor é o princípio da sabedoria." Então, é uma falácia dizer que temor e a inquietação não são utilizados para alavancar a moral em toda a Bíblia.
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A grande questão colocada na curta história de Voltaire é se a motivação do medo é sempre ética. Se você fizer alguma coisa, porque há uma ameaça de dor e sofrimento se não o fizer, ou se você adiar a fazer algo que você realmente gostaria de fazer - pela mesma razão - você está sendo moral?
O que Voltaire está realmente dizendo, como Nietzsche, Marx e Freud diriam mais tarde - é que a religião é útil para manter certos tipos de pessoas na linha. A sociedade europeia dos séculos XVIII e XIX poderia ser perfeitamente dividida entre aqueles que tinham melhor conhecimento e aqueles que serviam aos primeiros. Marx foi mais longe ao sugerir que a deferência social que as classes abastadas davam à religião era destinada simplesmente a convencer as classes mais baixas de que a religião é verdadeira; de fato, é exatamente o que Voltaire está dizendo: A religião é um mecanismo usado pelos instruídos para manter os ignorantes em seu lugar. Isso realmente traz vantagens sociais - o pai judeu de Marx se “converteu” convenientemente para a Igreja do Estado da Prússia, a fim de continuar a trabalhar como advogado. E todos nós conhecemos a mais famosa descrição do Marx filho sobre o tema: "A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo. É necessária a abolição da religião como felicidade ilusória do povo para que alcancem a sua felicidade real."
O que está faltando nessa crítica, é claro, é a questão de saber se um "ato religioso" de alguma forma pode ser um "ato moral." Claramente, a crença em Deus (ou um tipo específico de Deus) fornece incentivos de comportamento. Como um sistema de controle baseado no medo, a religião evita que as pessoas "sejam más", ou pelo menos façam coisas consideradas ruins pelo controlador. Mas ela faz isso de forma ineficiente. Ela oferece claramente às pessoas uma explicação de como elas devem se comportam de certas maneiras, que vão desde a "Bíblia manda fazer isso" até "Papa dixit" (O papa falou). Como forma de consolo, ela ensina as pessoas a lidar com o medo e a insegurança criada pela opressão. Mas ela faz isso totalmente à custa de auto realização. É a segurança de um relacionamento abusivo, onde o conforto consiste em ser capaz de prever e manipular erupções de violência. Na verdade, ao se analisar as origens de sacrifício da religião, este era precisamente o seu papel social. Mesmo a história da crucificação, que muitas pessoas acreditam ser uma história sobre amor e perdão, é a história de um Deus tão irritado com as imperfeições pecaminosas da humanidade que transfere sua violência para seu único filho, que se torna a vítima redentora - o preço a pagar por elas - de pecados que não cometeu.
Vamos chamar essa abordagem religiosa de o comportamento de "ser bom". Ser bom não é o mesmo que ser ético ou virtuoso, ou fazer o bem, ou mesmo levar uma vida correta. É uma mãe apontando um dedo ameaçador para uma criança de três anos dizendo "É melhor ser bom." Isso sempre envolve ameaça e recompensa. Duas gerações atrás, a imagem teria incluído ameaças com cintos ou palmatórias ou ir para a cama sem jantar. Eu acho que, infelizmente, em alguns lugares isso ainda é feito. Mas você não vai extrair ética disso. Você somente conseguirá obediência e submissão.
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E sobre a história de Diderot do missionário e o chefe da tribo? Se a história de Voltaire sugere que a religião seja dissuasiva e coercitiva, Diderot sugere outra razão pela qual a religião não se coaduna com a ética: A religião é prescritiva, e como a política, é localizada. Em 2000 anos de manipulações da mensagem, ela mudou, porque nós mudamos nossas mentes. A maioria das regras bíblicas sobre propriedade, bens móveis, adultério e incesto eram típicos de todo o Oriente Médio; de fato, como Freud reconheceu, os tabus contra o assassinato e incesto são a mais antiga forma de leis em algumas sociedades tribais. Mas os livros que chamamos a base da "ética judaico-cristã" não foram escritos por tribos - tribos não sabiam escrever. E o corpo de leis que chamamos de os Dez Mandamentos contêm grande quantidade de regras que foram discretamente colocados em baús e guardadas no sótão.
Por exemplo, todos nós aplaudimos a sabedoria do mandamento que diz: "Honra teu pai e tua mãe." Ele soa muito bem, especialmente durante as férias escolares. Mas Deuteronômio 21.20 diz que os filhos desobedientes deveriam ser apedrejados na frente dos anciãos às portas da cidade. Em Êxodo 21.17 diz que quem insulta o pai e a mãe deve ser condenado à morte. Assim também para o adultério, que pertence a uma lei antiga de propriedade no sistema judaico, a punição é apedrejamento - normalmente só para a mulher (Deut. 22,21). Em Deut. 22.28, a pena por estuprar uma virgem solteira é uma multa de 50 shekels - além de ser obrigado a tomá-la como esposa. Há leis que protegem os direitos dos primogênitos, das esposas desprezadas quando um homem tem várias esposas (Deut. 21,15) e até mesmo leis sobre quanto tempo um guerreiro judeu deve esperar (um mês) antes que ele possa ter relações sexuais com uma mulher que capturou em batalha (21,10). De acordo com Levítico 19.23, estuprar a escrava de outro homem é punido, fazendo-se uma oferta ao sacerdote, a quem se pede que seja perdoado. Existem leis sobre quanto tempo você pode manter um hebreu do sexo masculino como escravo -6 anos - mas se você vender sua filha como escrava para outro homem, ela não pode ser libertada, a não ser depois que o dono tenha relações sexuais com ela e chegue a conclusão que ela não agrada - nesse caso ela pode ser colocada à venda (resgate) (Êxodo 21. 7ss.). A Lei vai, assim por diante, na Torá.
A pura ferocidade do Deus que dá, ou melhor, grita estes mandamentos para o seu povo escolhido está distante de nosso tempo. Não mais se reconhece essa voz: Não fazer o que ele manda resulta em terror: Na verdade, essa é a própria palavra que ele usa: "Trarei sobre vós o terror súbito, espalhando doença, febre recorrente, pragas que vão cegá-lo ... Aqueles que te odeiam vão perseguir-te até que não mais haja lugar para correr; Vou multiplicar suas calamidades sete vezes mais do que seus pecados merecem. ... Vou enviar feras para o seu meio e elas vão rasgar seus filhos ... Se me desafiarem, eu vos açoitarei sete vezes. ... Eu vou enviar a peste ... racionar teu pão de cada dia, até que dez mulheres possam assar o teu pão em um único forno. ... Eu vou castigar-te sete vezes mais. ... Em vez de carne, tu comerás teus filhos e tuas filhas". Não duvide dessas ameaças: Leia Levítico 26. Ali há talento literário. O Deus do Antigo Testamento é uma figura tridimensional - muito maior do que Zeus e duas vezes mais maligna. (Será que Zeus foi capaz de dar rédea mais livre para seus apetites sexuais, ao passo que Javé limitou-se a uma virgem galileia?) E se você tiver condições de pesquisar, não vai encontrar essas leis "revogadas" em livros posteriores, pelo menos, não da maneira moderna de como as leis podem ser alteradas e revogadas. Mas é absolutamente certo de que qualquer um que tentasse obedecer a essas leis no século XX, na Europa ou na América, seria jogado na prisão, e a alegação da defesa de que "A Bíblia manda isso" não seria uma defesa adequada.
Uma maneira de mapear o chamado progresso da civilização ocidental é rastrear como os valores humanos eventualmente vencem a ferocidade da lei religiosa. O tipo de moralidade que o sacerdote de Diderot representa, como a moralidade da Bíblia, e até mesmo as versões resumidas de ensino bíblico e do Alcorão que as modernas denominações religiosas defendem, não é ética. Não é ética porque a ética não pode ser fundamentada no que eu vou chamar de "dissuasão prescritiva sem conexão." Se você me diz "Bem: ninguém acredita mais nessas coisas", então eu digo "Ainda bem que não mais acreditamos. Então é hora de parar de dizer que a Bíblia seja a fonte de autoridade moral quando a conduta do seu herói não mais condiz com nossos padrões de comportamento civil." Se você diz: "Há grande sabedoria e poesia nas escrituras, " então eu digo "Por favor, então, vamos tratá-las como outros grandes livros que expressam ideias, costumes e valores que não têm autoridade sobre a forma como nós conduzimos nossas vidas. " Não tenho nada contra quem quer apreciar a Bíblia como um produto de seu próprio tempo e da cultura - com todas as condições que regulam uma apreciação desse tipo. Minha briga é com as pessoas que querem torná-la um documento para o nosso tempo e cultura.
E suponho que minha briga se estenda a pessoas que se consideram especialistas, quando na realidade, não passam de especialistas em interpretações que desvirtuam o que está escrito. Os teólogos liberais são imensamente talentosos em reinventar o Deus da Bíblia à luz das preocupações sociais modernas. Mas o resultado é uma obra literária, não uma questão ética. Em outro extremo, que é realmente um falso oposto, são os fundamentalistas que dizem defender a verdade literal da Bíblia, ignorando dois terços do texto e incidindo sobre a verdade "literal" contida em frases e pedaços de textos.
A Bíblia pode tornar alguém bom? Se você aceitar a estrutura, começando com Adão e Eva, e a criação de uma raça condenada a ficar perpetuamente nos três anos de idade, restringida à obediência, acho que pode.
Reduzido a sua forma básica, a tentação no Jardim do Éden é uma história sobre um pote de biscoitos e um manhoso, acusando a mãe. Mas é preciso mais do que evitar armadilhas para uma escolha ser moral ou uma ação ser ética. Um ato moral é aquele em que você pode exercer a dúvida livremente, onde uma pessoa confronta as escolhas humanas e as consequências humanas, pessoal e socialmente.
Para ser justo: a Bíblia e seus primos são registros importantes dessas escolhas humanas e suas consequências sociais, provenientes de uma época que não é mais relevante para nós. Para torná-la um livro para o nosso tempo é necessário abusar do livro e deixar de entender sua importância. O que é mais deprimente para alguns, talvez seja que, provavelmente, não existirá um livro que a substitua. Nem mesmo algum escrito por um humanista secular. Mas, em compensação, existirá a sabedoria, razão e a decisão de escolha, e isso nos fará humanamente melhor, mesmo que não exatamente bons.
https://rjosephhoffmann.wordpress.com/2009/04/30/quodlibet-good-without-god/#comments
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Sobre o autor:
Following graduation from Harvard Divinity School and the University of Oxford, R. Joseph Hoffmann was tutor in Greek at Keble College and Senior Scholar at St Cross College, Oxford, and Wissenschaftlicher Assistent in Patristics and Classical Studies at the University of Heidelberg.
Books: “Just War and Jihad: Violence in Judaism, Christianity and Islam”(2006), “Sources of the Jesus Tradition” (2010), “Celsus On the true Doctrine”, “Jesus Outside of Gospels”, “The Secret Gospels”