CONTO
O Náufrago do Deserto
Luis VC Vallejo
O Príncipe Yazhed atravessava o deserto com um
grande séqüito de soldados e camelos. Estava vindo de uma em sucedida
empreitada contra um inimigo do sul e tinha conseguido uma gorda
pilhagem. Estava levando para suas terras uma grande quantidade de
cavalos, cabras, ouro e víveres.
A caravana seguia lentamente, parando à noite para um merecido descanso.
Num belo dia, já perto de seus domínios, Yazhed resolveu não desarmar o
acampamento pelo amanhecer pois, pelos seus cálculos, aquele seria o
último dia de viagem. Resolveu então colocar seus soldados para se
preparem para entrar em sua cidade com toda pompa. Iria reservar esse
dia para os preparativos e partiria no dia seguinte. O calor estava
sufocante e o Príncipe ordenou que se fizesse um grande almoço para ele
e seu estado maior.
Todos estavam na grande tenda, desde cedo, bebendo e comendo. Na cidade,
ele seguia a lei e se abstinha de tomar álcool, mas em campanha, todos
bebiam, principalmente se nos despojos havia vinho.
A tarde já começava quando seu ajudante de ordens entrou na tenda, onde
todos os chefes estavam se regalando e chegou ao lado do príncipe,
falando baixo.
- Ó Grande Príncipe!
Não sabeis como estou pesaroso em interromper vossa nobre refeição,
mas os soldados avistaram um homem perdido no deserto, que acabou de
cair em uma duna bem a nossa frente. Venho então solicitar
humildemente seu conselho sobre como proceder nesse caso.
Yazhed, meio embriagado, respondeu:
- Grande
cavalgadura! Como ousas vir perturbar meu lazer com tão ínfima
questão? Quem é este homem? Ninguém! Mais um grão de areia neste
vasto deserto. Por que te preocupas? Alá o pôs ali e Alá o retirará!
O ajudante, notando que o Príncipe não se zangara, animou-se a
continuar.
- Vossa
sabedoria é maior que este deserto, ó Senhor da Guerra! Devemos,
pois, deixar o pobre infeliz esturricar até morrer naquela duna?
O Príncipe virou-se para seu general, que acabara de dar um imenso
arroto e perguntou-lhe:
- Hassan, meu
predileto! Vejo que estás apreciando as iguarias que este pobre
servo de Alá humildemente está a lhes servir, mas, ouviste o que
este filho de um asno está a zurrar?
Hassan, novamente com a boca cheia, assentiu com a cabeça e resmungou um
sim.
- Dizei-me,
pois, ó general invencível, que farias tu nesse caso, se estivesses
em meu lugar?
Hassan engoliu e, de olho em um resto de pernil de carneiro, respondeu
depressa quase sem pensar, segurando o osso do pernil que alguém já
estava tentando tirar da bandeja.
- Meu grande
amo, que cada um salve-se a si mesmo.
- Sábia resposta - disse o príncipe
voltando-se para seu ajudante de ordens, que se chamava Omar
- Ó inseto do oásis! Ouviste o que disse o grande general Hassan.
Que o homem venha até mim implorar ajuda. Caso ele o consiga, a
receberá. Mas, atente bem: ninguém poderá dar-lhe nada, nem comida,
nem água, nem mesmo sombra. Quem o fizer será deixado aqui ,
enterrado com a cabeça de fora, para morrer em seu lugar. Ele terá
que chegar até mim por suas próprias forças! Vá e o informe disso.
Omar saiu da tenda, passou as ordens do príncipe para a soldadesca,
montou em um cavalo e dirigiu-se até a duna, onde o pobre homem estava
caído. Em lá chegando, viu que o homem ainda não morrera, mas estava
próximo do fim. Saltou do cavalo, abaixou-se e sem tocá-lo indagou:
- Pobre
criatura! Que te aconteceu? Podes me entender ?
O homem moveu a cabeça devagar, reuniu suas débeis forças e murmurou:
- Água !
- Ouve-me com atenção, ó desventurado! Tu podes te salvar se me
escutares e fizeres tudo o que eu disser. Abaixo desta duna está meu
amo, o Príncipe Yazhed, que se dispõe a ajudar-te, caso consigas
chegar até sua tenda. Não podemos fazer nada por ti, sob pena de
morte terrível. Tudo depende de ti e tuas forças. Estás a me
entender?
- Por amor de Alá - sussurrou o homem
- apenas algumas gotas de água!
- Infelizmente, meu pobre homem -
falou Omar -
nada posso te dar, nem mesmo sombra, mas vou ficar contigo e
ajudar-te-ei para que consigas chegar até o Príncipe. Escute:
estamos no topo de uma duna. O acampamento fica lá embaixo. Se tu te
arrastares um pouco começarás a deslizar até o sopé da duna. O
esforço será mínimo e tu o consegues. Quando lá chegares, mais um
pouquinho de esforço e terás conseguido chegar até a tenda do
Príncipe. Aí estarás salvo! Estás entendendo?
O homem mexeu levemente a cabeça e olhou fixamente para Omar. Seu olhar
era de súplica. De uma doída e derradeira súplica. Omar, num gesto
inusitado, deitou-se ao seu lado e falou pausadamente:
- Veja,
amigo! Tu podes! Tu tens força e eu estou contigo e iremos junto,
nos arrastando até nosso destino final. Vamos ! É a tua vida que
está em jogo e só tu podes salvá-la. Vamos! Esforça-te! Vamos!
Enquanto falava, Omar notou que um brilho fraco estava aparecendo no
fundo daqueles olhos, já quase sem vida. E continuou:
- Vamos!
Estou contigo! Tu podes! Vamos....Tua salvação está bem perto...
Lentamente o homem começou a arrastar-se e com ele, Omar, mas sempre sem
tocá-lo. Do topo da duna, iniciaram a descida, deslizando pela areia
quente e sufocante. A cada parada, Omar lançava um jorro de palavras de
incentivo e o homem recomeçava.
Os homens no acampamento ao verem que Omar estava se arrastando com o
moribundo, correm até onde estão e começam também a incentivar e animar
o náufrago. Este, como se retirasse forças das palavras que lhe eram
dirigidas, continuou a se arrastar até chegar à porta da tenda do
Príncipe.
Atraído pela algazarra, este já se encontrava do lado de fora, bem como
todos os seus convidados.
- Que queres,
ó verme das areias? - bradou,
embriagado.
- A salvação, emir! - respondeu quase
inaudivelmente o homem.
Omar, adiantou-se:
- Ó salvador dos
crentes! Esse infeliz suplica-lhe que o salve !
- Pois então quero ouvir isso de seus lábios -
trovejou Yazhed
- Que fale mais alto!
Fez-se um grande silêncio no acampamento. Somente
escutava-se o farfalhar do vento nas lonas das tendas. O homem, levantou
a cabeça, quase totalmente esgotado, reuniu suas derradeiras energias e
repetiu claramente:
- A salvação,
emir!
- Tragam água! - ordenou o Príncipe,
tomando um cálice de prata.
Rapidamente apareceu um odre, que serviu para encher o cálice que o
Príncipe segurava. Este, ao ver a água, amarelada, que estava sendo
servida bradou:
- Cão infiel!
Que tipo de água é essa?
O soldado que segurava o odre tremeu e desculpou-se.
- Que vossa
magnanimidade possa perdoar-me, ó grande amo! Por engano tomei o
odre de água dos animais.
Omar, rapidamente destampou outro odre exclamando:
- Aqui tenho
água limpa, nobre senhor!
Yazhed olhou por alguns instantes para a água suja em seu cálice e
recusou a oferta de Omar.
- O destino
quer que a água da salvação seja essa! Se esse homem tiver que ser
salvo, será por intermédio dessa bebida. Dêem-lha.
Os soldados levantaram o homem e deram-lhe a água do cálice, que o homem
bebeu de uma só vez. O Príncipe entrou na tenda e foi seguido por seus
convidados. Omar tomando seu odre, apressou-se a dar água limpa ao pobre
homem, que bebeu sofregamente. Em seguida levaram-no para uma tenda onde
começaram um processo para alimentá-lo.
No dia seguinte de manhã, levantaram acampamento e, à tarde, estavam
chegando em sua cidade. O homem salvou-se e o episódio foi esquecido.
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Anos mais tarde, a cidade sofreu um assédio de tribos rivais. A
mortandade foi grande e nosso náufrago morreu logo no começo do ataque.
Uma semana depois toda cidade foi arrasada morrendo o Príncipe, Omar e
todos os outros, depois de uma tremenda luta.
Todos foram levados à presença do anjo Gabriel, que estava inspecionando
a passagem pela ponte Al-Sirate, tão fina quanto um fio de cabelo, onde
os justos por ela caminham sem problemas e os maus despencam, caindo no
inferno.
Ao chegarem na extremidade da ponte, Yazhed e Omar viram, do outro lado
da ponte, perto da extremidade, o homem que tinha sido salvo no deserto.
Omar logo o reconheceu e bradou:
- Ó náufrago
do deserto! Intercede por nós junto ao santo anjo Gabriel, para que
possamos cruzar com segurança esta ponte mortal !
O anjo, ao ouvir isso conversou com o homem e voltou-se para Omar.
- Tu podes
passar que nada te acontecerá!
Omar dirigiu-se para a ponte e, com passo firme, atravessou a ponte.
- E quanto a
mim, santo anjo? - perguntou o Príncipe.
O anjo respondeu-lhe:
- Tu terás
que atravessar como os outros. Ninguém vai interceder por ti. Se
tuas boas obras forem maiores que as más, teus passos serão firmes e
não balançarás. Caso contrário, cairás. Mas isso, só saberemos
quando estiveres em cima da ponte.
O Príncipe indignado e temeroso voltou-se para o náufrago:
- Ó homem
ingrato! Como podes ser tão injusto? O sol do deserto secou tua
memória? Esqueceste, por acaso quem te salvou naquele deserto?
Esqueceste quem foi teu benfeitor? Quem te alimentou e te vestiu?
Esqueceste que esse Omar, que acabaste de favorecer, recusou-se a
molhar teus lábios com algumas salvadoras gotas de água? Por que o
ajudaste, se não fez nada por ti? Eu te dei a vida e tu me deves
isso!
O homem voltou-se para ele lentamente e, após um longo minuto, falou:
- O teu
engano é maior que a escuridão da noite! Tu não me deste nada! Tu me
vendeste um cálice de água suja. Sim, vendeste! Se quisesses me dar
a vida terias mandado alguém levar-me água - que não te fazia falta
- ao topo da duna e depois me recolheria em tua tenda. Mas,
decidiste que ninguém me desse nada e que eu comprasse minha
salvação. As moedas com que te paguei foram o esforço que eu julgava
não mais possuir, a humilhação de suplicar por ajuda e a revolta por
ser obrigado a beber água com fezes e urina de animais. Tu fizeste
questão de receber tais moedas, arrancadas de mim - quase morto -
que nem lágrimas tinha para chorar. Por isso afirmo: paguei-te
muito caro e nada te devo. Quanto a Omar, a este sim, devo minha
vida. Ele não me deu água para o corpo, pois se o fizesse estaria
atentando contra sua própria vida, mas com suas palavras e sua
companhia, comendo o pó junto comigo, deu a energia e coragem para
acalentar meu espírito, deu-me a esperança e ajudou a alimentá-la
com todas as forças de sua alma. Que o Príncipe passe pela ponte e
que a vontade de Alá, o verdadeiro, seja cumprida!
Yazhed, diante dessas palavras, calou-se e começou a caminhar pela
ponte.
© 2000 - LVCV
Eu sou exemplo disso. Tu que acabaste de ler, tire tuas próprias
conclusões e, se tiveres oportunidade, salve também um náufrago do
deserto, mas não ponhas teu mérito a perder: não o humilhes, nem o
obrigues a pagar pela salvação!
L Vallejo
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